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Moda como narradora das histórias dos territórios marginalizados

por Cristiany Soares dos Santos  Mestranda PPGModa

No cenário efervescente da moda, a produção de imagens assume um papel central na comunicação de marcas e produtos. Nos últimos anos, tanto a produção quanto a comunicação de moda passaram por mudanças estruturais e de difusão, assumindo, assim, outras particularidades para conseguirem se adaptar às demandas da contemporaneidade. O entendimento das novas configurações dessa comunicação passa a servir como base para se (re)pensar as produções fotográficas de moda também como um instrumento estético-político.

 

Historicamente, a indústria da moda ainda é lida como um espaço elitizado no qual somente pessoas legitimadas pela branquidade 1 devem ter acesso; indivíduos pretos e periféricos, por sua vez, nunca, ou quase nunca, estiveram e estão presentes nesse seleto sistema formado por grupos brancos que podem vivenciar o ambiente da moda de forma privilegiada. Ao olhar-se de forma geral para as produções imagéticas da moda, percebe-se que as visualidades estético-culturais retratadas pelas mídias estiveram por um longo período à volta com arquétipos da branquidade, pois o desdobramento da naturalização do corpo [branco] da moda (dominante, interessado em atender aos desejos do colonizador) acarreta para o sistema hegemônico e privilegiado sociocultural e economicamente da branquidade todas as responsabilidades de uma violência simbólica – uma vez que esse ethos é utilizado com o intuito de legitimar os poderes simbólicos do grupo branco (Novelli, 2014).

 

O imaginário social criado sob os corpos pretos e as territorialidades periféricas está envolto de signos que etiquetam negativamente os seus habitantes, compreendendo-se, portanto, como o resultado de uma sociedade escravagista que comumente desenvolve suas relações a partir das hierarquias sociais pensadas para invisibilizar esses espaços enquanto potencialidades.​
 

Portanto fomentar produções estéticas a partir de referenciais negros pode ser entendido como um meio político de atuação da identidade negra e de sua valorização configurando um movimento entendido por Nascimento (2019) como “quilombismo”. Alguns profissionais pretos e periféricos se dedicam a produzir fotografias com tendências de estilo e referências estéticas que valorizam as suas culturas e os espaços em que estão inseridos, fazendo da linguagem visual a principal ferramenta para que se construa discursos sociais e estético-culturais, potencialize a representação das corporeidades pretas e periféricas no cenário da moda, como exemplo a antropóloga e estilista Rafaela Pinah.

 

A travesti preta nascida e criada em Realengo, zona oeste do Rio de Janeiro, revitaliza vozes e potencializa corpos criando fotografias de moda a partir de manifestações culturais que surgem nos espaços periféricos da cidade. É através da fotografia que Pinah compreende as performances visuais e culturais que pulsam pelos territórios que não costumam estar no centro dos interesses de uma elite cultural hegemônica. Ao decodificar movimentos populares brasileiro e, sobretudo, cariocas, com o laboratório de tendência Coolhunter Favela e produzir imagens de moda decoloniais com a UmTok, Pinah elabora táticas para (re)existir às formas as quais o sistema valida atributos hegemônicos e elitistas.

 

Neste sentido, as táticas, para Certeau (2019), podem ser consideradas ações que atuam entre as lógicas conservadoras das estratégias, sendo responsáveis por desenvolverem ideais de comportamentos e determinarem o que está de acordo com suas regras. Na prática, quando a diretora criativa traz para o centro de suas produções fotográficas referenciais estéticosculturais que são genuinamente pretas e periféricas há a intenção de criar modos de representações que (re)existam perante a um sistema de moda que discursa em prol de um sistema que sustenta desigualdades. E para além dos padrões tradicionais, as tendências de estilos que emergem no contexto periférico constituem um caminho que os atores desses espaços trilham para (re)desenhar outros referenciais estéticos, e a valorização dessas vão sendo reconstruídas por meio de produções fotográficas de moda que as desassociam dos marcadores marginais.

Enquanto potencialidades estéticas e culturais, o funk, as tendências capilares, o carnaval, a religiosidade africana e o território periférico – força motriz das produções de Pinah – são referenciais comumente representadas por corpos que não costumam atender aos desejos das classes dominantes; por sua vez, essas visualidades estético-culturais não estão no centro das representações culturais de moda estrategicamente por ser construídas pela branquidade, por meio de discursos que as descaracterizam de seus verdadeiros significados. Ainda que esses reconheçam simbolicamente as produções estéticas e culturais dos espaços periféricos com a intenção transformá-las para cabê-las nas dinâmicas midiáticas (Villaça, 2012). A autora reitera, portanto, que alguns elementos estético-culturais “progressivamente, perdem sua fisicidade geográfica, sua estabilidade, e passam a serem visivelmente elementos coo estruturantes dos processos de subjetivação, contribuindo para isso toda a publicidade midiática” (Villaça, 2012, p. 47). Em contrapartida, os sujeitos que fazem uso dessas estéticas e criam táticas para (re)existirem às formas as quais o sistema da moda ajuda a corroborar por meio de uma linguagem conservadora, hegemônica e elitista.

 

Portanto, visualidades estético-culturais que surgem nas territorialidades periféricas são essenciais para valorização e a reafirmação de uma cultura múltipla e complexa que está constantemente associada a marginalidade por não ter suas manifestações artístico-culturais corroboradas pela branquidade. Para as corporeidades negras e residentes em territorialidades de comunidades periféricas criar em torno de seus referenciais é uma possibilidade de protagonizar suas estéticas e culturas e (re)existir perante uma política de extermínio cultural. À medida que a moda abre espaços tangíveis para essas vozes ganharem notoriedade, bem como afirmaremse enquanto novos agentes difusores de moda que valorizam e celebram a rica herança das culturas negras e periféricas brasileiras, reforça-se a importância da moda como um instrumento estético-político.

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